03/12/2017

Como meu pai

Cristiane Gercina
do Agora

Ele vai dormir de madrugada todos os dias, depois de trabalhar por 12 horas ou mais como motorista de transporte público. Ele é dono do próprio negócio e sempre amou dirigir. Vai deitar de madrugada e, logo cedo, está de pé.

Corre para ver os filhos, as netas, o neto, o pai, a mãe. Corre para estar sempre ao lado de minha mãe.

Ele está ausente em muitos almoços de família aos domingos. Está ausente em muitos jantares e em muitas festas. Há mais de 25 anos é assim.

E, todas as vezes que noto a sua ausência, me lembro das minhas ausências nos almoços de família, nos jantares, em festas,
para poder trabalhar sábados, domingos e feriados. Como meu pai!

E quando estou a um ponto de perder a paciência com as meninas, eu lembro que quero ser uma pessoa mais calma e mais tranquila, que quero falar com elas com amor. Como meu pai!

E quando eu estou na rua, carro quebrado, vidro arrombado, atrás de mecânico, atrás de colo, eu ligo para o meu pai.

E ele corre, e ele acalma. E eu choro. E eu me sinto ainda aquela menininha de cabelo tigelinha, no colo dele, em uma das poucas fotos em que estamos juntos.

Porque a gente não tirava foto. Porque não havia dinheiro para nada. Não havia dinheiro para fotos, para brinquedos, para sapatos nem para roupas, mas meu pai nunca deixou que meus livros faltassem. Eu era a única da escola nos confins da zona leste que tinha todos os livros.

Meus amigos levavam materiais bacanas, estojo bonito, mochila nova. Eu não, levava os meus livros. Nem que fossem de sebo, nem que fossem parcelados. Meu pai não deixava faltar.

Papai queria que eu fosse médica ou advogada ou qualquer outra profissão que as pessoas vindas do sertão _como
ele_ acham bacanas. E lutou muito para isso. Mas não imaginava que ele, com seu hábito de ler jornais aos domingos, seria o grande responsável pela minha escolha.

Meu pai, que não concluiu o ensino básico e vendeu limão de porta em porta, que "não tem paciência para ler tudo" no jornal,foi quem fez com que eu me tornasse a jornalista que sou hoje. E eu, que sou tão parecida com ele, entendo que
hoje só posso repetir com minhas filhas tudo o que o meu pai fez por mim.

Cristiane Gercina, 38 anos, é mãe de Luiza, 10, e Laura, 5. Graduada e pós-graduada pela Unesp, é editora-assistente de Grana do Agora. É apaixonada pelas filhas e por literatura.

Quer ver o desenho do seu filho publicado na coluna? Envie-o para o e-mail colodemae@grupofolha.com.br com nome completo e idade da criança, nome do responsável e celular do responsável.

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